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Ninho de vidro, muito além do abrigo

Josely Carvalho, artista de criação extensa e comprometida com as questões da vida, do ser humano e do mundo, apresenta a instalação Nidus Vitreo, parte da série Diário de cheiros que sutilmente toca em um espaço íntimo em cada um de nós.

 

Consegue entrar em um território onde não há limites e nem tempo: o território da memória.

Mas o ninho é de vidro, frio e reflete em sua transparência ele mesmo, suas entranhas, seus nós, superposições de galhos, sua própria arquitetura.

 

Ao mesmo tempo, o ninho é a imagem do acolhimento, do aconchego, do refúgio.

Do seu centro emana um odor, potente e desencadeador de memórias.

O cheiro tem o poder de trazer à tona o que estava oculto, adormecido ou confinado a um lugar, que não se sabe onde fica.

O ninho é aquele lugar onde queremos estar para nos proteger do mundo e de onde devemos sair para enfrentá-lo. Além do ninho, em seu entorno estamos nós, também envolvidos por outros cheiros: o da terra, o do sol quente e o do mar.

Cheiros que nos remetem ao que está fora do ninho evocando outras memórias.

Porque fora do ninho encontramo-nos numa espécie de outro ninho maior, que é o de todos nós: este planeta pulsante que habitamos e que emana a síntese de nossos atos.

Nas fotografias, os pássaros estão mortos e repousam seus corpos inertes em lençóis que guardam os vestígios da passagem de alguém e onde, talvez, ainda haja um pouco de calor...

Na obra de Josely o ninho não é do pássaro, nem a cama é do homem.

Como podemos ocupar este ninho, já que o espaço que seria nosso está ocupado? Onde colocarmos, então, nossas reminiscências evocadas pelo ninho, pelos cheiros, pelas imagens das fotografias?

Talvez, por um instante, elas ocupem o espaço surgido do desconforto, do estranhamento, do inusitado. Mas logo se acomodam em algum lugar de nós.

 

Porque na tentativa de entendimento da obra da artista e também da memória evocada, individual ou coletiva, surgem vivas, e em suspensão, as recordações mais íntimas e conhecidas de cada um de nós. Destes lugares solitários para onde nos levou nossa silenciosa percepção.

Desta composição de idéias contrárias se deflagra um outro processo de criação, ou recriação.

Foi Josely quem manipulou a matéria: quem como arquiteto e pássaro, seguindo sua intuição e necessidade íntima, construiu o ninho no espaço; quem colocou os pássaros mortos na cama, porque os mortos também precisam de uma morada; quem registrou as cenas, quem criou a obra.

Mas somos nós que criamos as interpretações e lidamos com o que foi libertado de dentro de nós. Interagindo com estes valores tão fortes e particulares, a imagem de conforto também se soma à da morte, do desconforto.

Da dualidade dos contrários surge a unidade da memória íntima, tão infinitamente livre e sem limites. Josely Carvalho inverte os espaços, os papéis, os sentidos, quem sabe os sonhos. Da soma dessas sensações desencadeadas, na memória pelas imagens e cheiros, revivemos algo adormecido, já vivido e que só a nós pertence. O poder da memória nos faz reviver o passado.

Toca no nosso entendimento e reflexão sobre temporalidade. Da troca de papéis se desperta para novas sensações. E cheiros podem ser de alegria, tristeza, medo, coragem, perenidade, fim, extinção, renascimento, cheiro de lugares, momentos, cheiro que transporta, que nos dá a sensação da morte, da vida... Nesta exposição a nossa interação com a obra de Josely Carvalho vai além do que se mostra, muito além do que se vê.

Laura Abreu

Curadora


Ninho de vidro, muito além do abrigo. In: Diário de cheiros: Nidus vitreo de Josely Carvalho. Curadoria Laura Abreu. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes, 2010. Catálogo.

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